Medicíndia

Flavia B
4 min readApr 7, 2021

--

A reconexão às minhas raízes através da arte da cura

Mulher com máscara e touca hospitalares no plano anterior, com um pequeno açude e árvores araucárias ao fundo
Foto: Arquivo pessoal

“Ela é índia?” — disse a anciã indígena sobre mim. Responderam que não e eu respondi timidamente: “eu sou descendente, estou descobrindo a minha origem…” Não houve cara de espanto na roda de mulheres e elas continuaram seus afazeres de produzir artesanato e tomar chimarrão. Eu estava aliviada.

Há alguns meses trabalhando como médica na saúde indígena e há alguns anos estudando o tema, foi extremamente difícil afirmar ser indígena.

Ao contrário do que o senso comum brasileiro diz, não é tão simples se autodeclarar indígena. Menos simples ainda é descobrir-se indígena, quando tudo e todos parecem dizer que isso é errado ou que “não faz sentido querer ser índio”.

Nasci em Belém, no Pará, estado com maior número de pessoas autodeclaradas pardas do Brasil. A ascendência indígena sempre esteve estampada no meu rosto, assim como a ancestralidade sempre esteve no meu espírito. Durante muitos anos tentei silenciar ambos, em vão.

Cresci em família de classe média, na cidade, criada por mãe branca e filha de pai cuja ascendência indígena foi tão silenciada quanto a minha. Saúde e educação foram as prioridades de meus pais enquanto eu crescia, e com isso consegui entrar na faculdade de medicina em uma universidade estadual aos 17 anos, quando a política de cotas ainda engatinhava no Brasil.

Apesar de o currículo do curso ter um forte enfoque na saúde coletiva/pública/universal, não lembro de ter assistido uma aula sequer sobre saúde indígena nos 6 anos de aprendizado. Ah, a universidade também era em Belém do Pará — além do elevado número de “pardos”, o estado tem população aproximada de 60 mil indígenas.

Ou seja, me formei achando que tinha que ser uma especialista de consultório ou hospital para merecer o respeito dos meus pares. E passei os anos seguintes lutando para realizar o que a sociedade esperava de mim: fui militar, médica de “postinho”, passei em uma ótima residência médica e me tornei especialista em Neurologia. Qual foi a minha surpresa após começar a atender como especialista senão a frustração e sensação de não pertencimento?

Em algum momento da vida profissional que eu já quase não lembro de ter vivido resolvi estudar sobre saúde indígena, quase ao mesmo tempo em que li histórias de retomada étnica, resgate da ancestralidade, reconexão e ainda complexidade do pardo. Eu estava me enxergando como a vida inteira a sociedade me enxergou, mas com uma diferença: dessa vez eu não tinha vergonha de “parecer índia”.

Eu queria descobrir cada vez mais a minha origem e ficou claro o porquê de não pertencimento ao padrão biomédico onde eu estava inserida.

Mão segurando “bottom” com imagem do mapa do Brasil e a inscrição TERRA INDÍGENA
Foto: Arquivo pessoal (Arte do bottom: Jé Hãmãgãy)

O ano era 2020 e em meio à minha reconexão veio a pandemia da COVID19. Entre conversas com familiares sobre os ancestrais, me vi mudando de cidade, estado e especialidade: tornei-me Médica da saúde indígena. Disposta a entender sem pressa de onde eu viera, mergulhei fundo nas tradições indígenas de etnias até então pouco conhecidas para mim. E o tão distante pertencimento emergiu sem dificuldade.

A medicina também me dera um outro presente. Algum tempo antes, lembrei, vi uma antiga professora compartilhar a história de sua sobrinha que se reconectou às origens Tupinambás através da arte. Acompanhando a arte visual da parenta Moara conheci vários outros parentes em caminhos semelhantes ao meu. A troca de conhecimento, vivências e carinho, no dia a dia, no trabalho e na luta, foi me fortalecendo cada vez mais.

Descobrir que descendo de um povo considerado extinto no início me entristeceu. Porém as palavras de um companheiro de luta me deram forças para continuar. “Está extinto o ritual, a língua, o credo. Somente. Mas o povo e a cultura alimentar estão inseridos no contexto urbano. O embranquecimento afirma extinção. A resistência afirma existência”.

Desenho ilustrando figuras femininas com pinturas e adereços de diversas etnias indígenas brasileiras
Arte: Daiara Tukano

O traço marcante na cultura marajoara é a tradição matrilinear. No meu caso, passada a mim por minha tia e avó paternas, e passada a minha avó pela tia paterna. Minha avó foi cuidada pela tia após o falecimento de sua mãe, e com ela aprendeu a curar diversas enfermidades com andiroba e copaíba, medicina tradicional que uso ainda hoje. Assim como eu, dona Sarah saiu ainda jovem da sua terra natal, Cachoeira do Arari, em busca de melhorias de vida. Graças à ela pude reencontrar as raízes um dia perdidas na urbanização.

O processo de reconexão e a cura do espírito, que vivera tantos anos em reclusão, agora se abrem ao mundo: eu sou Flávia, indígena remanescente Aruã, em reconexão com minha ancestralidade.💭

--

--