Sangue meu

Reflexões sobre a menstruação e seus pormenores em 2024

Flavia B
7 min readJan 29, 2024
Doces sortidos imitando absorventes com sangue e vaginas
Foto: Vagina Museum ( https://www.instagram.com/vagina_museum?utm_source=ig_web_button_share_sheet&igsh=ZDNlZDc0MzIxNw==)

Em agosto de 2023 uma notícia “quase” distópica chamou minha atenção: o primeiro estudo utilizando sangue humano para testar produtos menstruais tinha acabado de ser publicado. Sim, o líquido azul mágico que aparecia nos comerciais de absorventes era muito mais que apelo estético. Todos os estudos prévios sobre a capacidade de absorção dos produtos foram feitos com água ou solução salina — que são muito pouco, quase nada mesmo, parecidas com o conteúdo menstrual.

Por outro lado não posso negar que uma parte da reportagem me deixou muito feliz: o disco menstrual foi o campeão na retenção de conteúdo menstrual!

Essas duas informações mantiveram-se na minha mente desde então porque sou uma grande entusiasta dos métodos mais “modernos” de higiene menstrual e sempre falei abertamente sobre isso. Há cerca de oito anos descobri o coletor menstrual, em seguida as calcinhas e mais recentemente o disco, que logo se tornou o meu favorito da vida. E os fatores que me encantam nesse tipo de produto são vários: preço, durabilidade, praticidade e, claro, o menor impacto ambiental. Confesso que quase me choca conhecer alguém que menstrua no meu círculo social que nunca ao menos considerou usar um coletor ao invés de um absorvente descartável.

Lembro perfeitamente da primeira vez que comentei sobre coletor menstrual com duas amigas (ambas médicas, diga-se de passagem), lá em 2016. Eu estava apaixonada pela praticidade (e economia, e redução do impacto ambiental…) do produto, mas recebi de volta uma expressão de estranhamento de uma e uma resposta cheia de tabu da outra, que afirmava não ter nojo de sangue, exceto o sangue menstrual. Recordo inclusive de pensar algo do tipo “se ela não tem nojo de sangue, mas tem de menstruação… ela tem nojo da própria vagina?” — Até hoje não sei de fato a resposta, mas arrisco dizer que era afirmativa.

O tabu de ter contato com o sangue menstrual nunca fez sentido pra mim e me lembra muito uma frase atribuída a Maia Schwartz que diz que “menstruação é o único sangue que não vem de violência, mas é o que provoca mais nojo”. A real é que visualizar o sangue no coletor melhora muito a nossa percepção da quantidade de menstruação (fato não comprovado pelo estudo, apenas observação recorrente de pessoas que usam) e a sujeira na hora da troca não é nada digno de filmes de terror.

Imagem do filme “Carrie, a estranha”: moça com um vestido branco coberta de tinta vermelha/sangue, de pé em uma calçada ao lado de uma cerca branca
“Carrie, a estranha” (1976) em: moma.org

Voltando ao artigo, chama a atenção que o questionamento inicial para produzi-lo foi a grande quantidade de pessoas com sangramento menstrual intenso que usavam coletores menstruais no serviço de saúde do qual as pesquisadoras fazem parte. Até então, um dos critérios para quantificar a intensidade do fluxo era o número de absorventes utilizados por ciclo — o que inclusive também se tornou questionável após o estudo.

Outro achado crucial foi o fato de que a maioria dos produtos testados afirmava ter uma capacidade de absorção maior do que o encontrado nos experimentos. Esse fato foi atribuído, como era de se esperar, à não utilização de sangue nos testes dos fabricantes. Infelizmente isso pode resultar em erros no diagnóstico de sangramento menstrual intenso, pois os critérios para classificar esse tipo de sangramento superestimam a capacidade de absorção dos absorventes e por conseguinte subestimam a real quantidade de sangramento apresentado.

Apesar de, no geral, o disco menstrual ter sido o ícone da segurança menstrual, um detalhe me chamou a atenção em relação aos coletores e é algo notado pelas autoras como limitação do estudo: os coletores foram testados até o limite indicado pelo fabricante no produto (quando havia) ou até o limite visível antes de transbordar, o que é similar ao uso rotineiro. Já os absorventes internos e externos foram “encharcados” até que o sangue começasse a vazar, no caso do externo, ou até atingir a cordinha do interno. Quem usa ou já usou absorventes sabe que essa é uma situação limite, bem diferente do uso habitual, já que bem antes de ficarem encharcados os produtos descartáveis provocam desconforto considerável que invariavelmente resulta na troca por um novo. A meu ver, isso pode sugerir um ponto positivo para os coletores, que apresentaram um desempenho similar aos absorventes internos e inferior aos externos nesse estudo, e que deve ser explorado a partir de agora.

Outra vantagem observada por quem usa o coletor ou disco (comparados ao absorvente interno) é a facilidade de utilização no final do ciclo, quando o sangramento é em menor quantidade e menos contínuo. Os produtos reutilizáveis são geralmente feitos de silicone e, portanto, diferente do algodão do qual é feito o absorvente interno, não retira a umidade natural da vagina. Esse é um ponto positivo tanto ao facilitar a remoção do dispositivo quanto em manter o equilíbrio do conteúdo vaginal.

Quanto ao número de estudos publicados sobre o tema, há uma visível discrepância em relação, por exemplo, à saúde sexual de pessoas com pênis. O editorial da publicação exemplifica com uma pesquisa na biblioteca online PubMed por “sangue menstrual” que resulta em 1 (um) artigo publicado entre 1941 e 1950, e apenas 400 nas décadas seguintes, enquanto cerca de 10.000 estudos sobre disfunção erétil foram publicados no mesmo período. “Um pouco” desproporcional, certo?

Ainda assim, creio que até esse ponto as informações sejam pouco surpreendentes, afinal, menstruação e saúde sexual são temas recheados de tabu. Entretanto, algumas reações a esse estudo me deixaram bastante revoltada. Nessa matéria do G1 sobre o estudo foi abordada a falta de regulação dos produtos menstruais no Brasil e o descaso de algumas instituições em enxergar a necessidade de mudança desse cenário. Um dos entrevistados pela reportagem, diretor de uma instituição ligada à saúde da mulher, chega a afirmar que existem “discussões mais relevantes do que debater a capacidade de absorção de absorventes”.

“Saber se um absorvente absorve uma [certa] quantidade não é importante. Se uma mulher usa um absorvente e ele vaza, ela compra de outro tipo ou marca no outro mês. Isso não precisa ser discutido” — Argumentou o entrevistado

Felizmente essa não é a opinião de uma das autoras do estudo, Dra Bethany Samuelson Bannow, que também é professora assistente de medicina da Oregon Health & Science University. Ela afirma: “Prefiro que pessoas com sangramento menstrual intenso procurem seus médicos para descobrir o que pode ser feito para reduzir o sangramento, ao invés de [tentarem] achar um produto mais conveniente”.

Entrando agora em uma aspecto ainda mais polêmico (e que não deveria ser) do assunto, os produtos reutilizáveis podem ser uma arma poderosa no combate à pobreza menstrual. Ainda segundo a reportagem do G1, o gasto médio mensal de uma pessoa que menstrua por 5 dias e troca o absorvente no intervalo recomendado de quatro horas é de R$64. Além disso, apenas no início de 2023 o governo federal publicou um decreto que prevê a distribuição gratuita de absorventes para pessoas que menstruam e estejam em situação de vulnerabilidade.

Essa medida absolutamente necessária contribui, sem dúvida, para mitigar a situação da pobreza menstrual, mas ainda dá para melhorar. Pessoas em situação de rua, por exemplo, conseguem trocar o absorvente a cada quatro horas? E pessoas que vivem em locais de difícil acesso conseguem receber os produtos com a frequência necessária?

Os produtos não descartáveis (tanto coletor e disco quanto calcinhas e absorventes reutilizáveis) podem ter um papel promissor nessas situações, desde que as orientações devidas sejam fornecidas. Por outro lado, a falta de saneamento básico e acesso a água potável pode prejudicar o uso desses dispositivos, que necessitam ser lavados e por vezes fervidos após o uso. Ou seja, a pobreza menstrual escancara ainda mais as desigualdades do nosso país.

Há duas cenas na série da HBO The last of Us que ilustram bem a importância de um bom produto menstrual em uma situação limite (no caso, um cenário pós-apocalíptico). A primeira é quando Ellie comemora ao encontrar uma caixa de absorvente interno em um cômodo abandonado e a segunda quando ganha de presente um coletor menstrual com um folheto de orientações e afirma “gross”(algo como “nojento”). Mas pensa bem, quem poderia ser mais útil num apocalipse zumbi (ou sei lá, se você precisar ficar trancado em casa por um ano devido a uma pandemia), uma caixa que vai durar um, quem sabe dois ciclos, ou um copinho que dura de três a cinco anos?

Independente da sua escolha, prossiga esse debate nos seus círculos sociais. A sociedade só tem a ganhar com isso.

Referências e links úteis:

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